Doença X. Vai existir e será uma emergência de saúde pública mundial.
Updated: May 12, 2021
Texto originalmente publicado no Diário de Notícias.

Na ciência existem coisas que sabemos saber, outras que desconhecemos desconhecer, e outras que sabemos desconhecer. No último grupo encontra-se a doença X. Doença X é o nome dado a uma doença que sabemos que irá existir e que será uma emergência de saúde pública mundial, mas que ainda não conhecemos. O novo coronavírus (2019-nCoV), que em poucas semanas infetou milhares e já matou mais de uma centena, relembra-nos que esta é uma ameaça real para a qual temos de estar preparados.
Embora pareça vinda de um filme de ficção científica passado num futuro distópico, a doença X não é algo novo. Em 1347, a peste negra foi trazida para a Europa, aparentemente por comerciantes de Génova que traziam os seus barcos da Crimeia para Veneza. Na altura, pessoas e ratos coexistiam, assim como as pulgas que deles se alimentavam e que serviam de vetores para a bactéria Yersinia pestis, causadora da Peste Negra. No pico da epidemia, entre 1347 e 1353, a peste negra viajou do sul ao norte da Europa, dizimando populações e afetando especialmente áreas mais urbanas e com maior densidade populacional. Estima-se que nesse curto período cerca de metade da população europeia tenha morrido, e que ao longo do séc. XIV a população mundial sofresse uma redução de 100 milhões de pessoas.
Séculos depois, outra pandemia surgiu. Em 1918 o mundo estava em plena Primeira Guerra Mundial quando uma estirpe de gripe infetou milhões. Para elevar os ânimos dos combatentes, os países em guerra escondiam os verdadeiros números de infetados, enquanto que Espanha, um país neutro na Guerra, reportava-os livremente criando a falsa impressão que o impacto da doença seria maior naquele país, tornando esta epidemia conhecida por gripe Espanhola. O aumento da migração, a fome, a falta de higiene, e os campos militares sobrelotados, fizeram com que o vírus se espalhasse rapidamente afetando especialmente jovens soldados. Estima-se que cerca de 4% da população mundial tenha morrido devido à epidemia em pouco mais de um ano.
Desde a peste negra e da gripe Espanhola, acompanhámos o aparecimento de muitas outras epidemias: o VIH nos anos 80-90, a SARS em 2003, a gripe H1N1 em 2009, o Ébola em 2014, e mais recentemente o Zika em 2016. Felizmente com o decorrer do tempo, o crescente desenvolvimento da medicina e da microbiologia permitiu-nos perceber melhor e mais rapidamente a causa destas doenças e assim agir de forma a prevenir o seu contágio.
O novo coronavírus (2019-nCoV), declarado emergência de saúde pública internacional, é outra doença X que a Organização Mundial de Saúde temia quando em 2018 comunicou priorizar a sua investigação. O vírus é transmitido entre pessoas e os seus sintomas são facilmente confundidos com a gripe comum. No entanto, ainda não é conhecido ao certo o seu R0, ou seja, o número médio de pessoas que uma única pessoa é capaz de infetar. Até agora não existem tratamentos ou vacinas, uma vez que o 2019-nCoV é um novo vírus nunca antes visto. Assim sendo, o foco apoia-se primeiramente na contenção do vírus e paralelamente na sua investigação. Ao contrário do que aconteceu anteriormente com a epidemia de SARS, um outro coronavírus, desta vez a China apressou-se a comunicar a situação e a tomar medidas para conter a epidemia. Por outro lado, investigadores começaram imediatamente a estudar o novo vírus e dentro de pouco tempo publicaram a sua sequência genética, o que será importante para o desenvolvimento de uma vacina.
O uso de vacinas é a forma mais eficaz de prevenir uma doença infecciosa. Estas contêm partes do micro-organismo, o que faz com que o nosso sistema imunitário forme defesas contra esse micro-organismo. Desta forma, quando exposto ao micro-organismo o corpo será capaz de o reconhecer e neutraliza-lo com os seus anticorpos, prevenindo o contágio. Por esta razão, o desenvolvimento de uma vacina é a chave no combate a doenças infecciosas e torna-se um objetivo assim que uma nova epidemia surge. No entanto o desenvolvimento de uma nova vacina pode levar mais de uma década, pois inclui investigação, testes clínicos e pré-clínicos para estudar a sua eficácia e segurança, e ainda aprovação das agências reguladoras. Recentemente o aumento do investimento na investigação da doença X permitiu a criação de plataformas de resposta rápida, que são capazes de acelerar o processo do desenvolvimento de vacinas, utilizando um alicerce comum que depois pode ser adaptado rapidamente para diferentes agentes infecciosos ao adicionar informação sobre esse novo agente. Estes avanços permitiram que uma vacina 100% eficaz contra o Ébola chegasse ao local em apenas um ano - ainda que demasiado tarde para evitar 11,000 mortes. A 23 de janeiro foi anunciado que a CEPI (em inglês, Coalition for Epidemic Preparedness Innovations) irá dar mais de 12 milhões $ a três empresas e universidades para desenvolverem vacinas contra o 2019-nCoV. A esperança é que com estas novas tecnologias para o desenvolvimento de vacinas, aliadas ao conhecimento sobre outros coronavírus, novos candidatos a vacinas contra 2019-nCoV surgirão em semanas.
A crise do novo coronavírus vem relembrar-nos que pandemias não são ficção científica e que não é possível prever quando, onde e o qual será a próxima doença infecciosa a emergir. A única forma de preparação para o desconhecido é ter planos de contingência bem estruturados e aumentar o investimento no desenvolvimento de vacinas, assim como a confiança que o público tem nas mesmas.